domingo, 21 de março de 2010

Termina o ciclo de habitos na minha vida...


" Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar
em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas do redor. E
porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não abre
as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se
acostuma, esquece o sol, o ar e esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A
tomar café correndo porque está atrasado. A comer sanduíche porque não dá
tempo para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A deitar cedo e dormir
pesado, sem ter vivido a vida.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra,
aceita os mortos e que haja número para os mortos. E, aceitando os números, não
acredita nas negociações de paz. E, não aceitando as negociações de paz, aceita ter
todo o dia o dia-a-dia da guerra, dos números de longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado, quando
precisa tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar
para ganhar dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer
fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez
pagará mas. E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro, para ter com
que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma à poluição. A salas fechadas de ar condicionado e cheiro
de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque os olhos levam na luz normal.
Às bactérias de água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos
rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo na madrugada, a temer
a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando
não perceber, vai afastando uma dor daqui, um ressentimento dali,
uma revolta acolá.

Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se
o trabalho está duro, a gente se consola pensando no final de semana. E, se no
fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir mais cedo e fica
satisfeito porque, afinal, está sempre com o sono atrasado.

Se acostuma a não ter que se ralar na aspereza para preservar a pele. Acostuma
a evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e baioneta, para poupar
o peito.

A gente se acostuma a poupar a vida. Que aos poucos se gasta e que, gasta de
tanto se acostumar, se perde de si mesma. "

( Marina Colassanti )

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